Documentos e procedimentos em excesso travam os negócios
Data: 17 de março de 2010
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Embora os especialistas afirmem que os abusos burocráticos não sejam uma característica só verde-amarela - e sim uma epidemia mundial -, dados do Banco Mundial mostram que no Brasil a regulação da atividade econômica é uma das mais travadas no mundo.
A pesquisa anual "Doing Business", promovida anualmente pela instituição, faz uma análise comparativa entre 183 países. Por meio da aplicação de modelos empíricos, examina a facilidade para a abertura de empresas, obtenção de alvarás, contratação de funcionários, registro de propriedades, obtenção de crédito, proteção de investidores, pagamento de impostos, comércio entre fronteiras, cumprimento de contratos e fechamento de empresas.
Sob a perspectiva geral da facilidade para fazer negócios, o Brasil está na 129ª posição entre as 183 economias analisadas - dois pontos abaixo do relatório de 2009. Na América Latina, só ficaram abaixo Equador, Bolívia, Venezuela, Haiti, Suriname e Honduras. Entre os dados que mostram a economia brasileira saindo-se bem figuram o índice de cobertura de órgãos privados de proteção ao crédito, a transparência nas relações com investidores e o índice de eficiência na proteção a esses investidores (tudo na esfera de atuação privada).
O pior dos resultados está nos procedimentos para o pagamento de impostos, em que o Brasil ocupa a 150ª posição. Os empresários brasileiros, segundo a pesquisa, têm que arcar com os custos de 2.600 horas anuais de trabalho para fazer frente à burocracia tributária. A média, na América Latina e no Caribe, é de 385,2 horas. Nos países de renda elevada (OCDE), de 194,1 horas.
O governo brasileiro, no entanto, vê esses dados com desconfiança. "A metodologia utilizada pelo Banco Mundial - que coleta as informações por intermédio de formulários preenchidos por intermediários - vem sendo objeto de questionamentos por parte do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior [MDIC]", diz o secretário de Comércio Exterior da pasta, Edson Lupatini Júnior. Segundo ele, o MDIC, em parceria com diversos órgãos do governo federal, tem se esforçado para a melhoria do ambiente jurídico, com simplificação e desburocratização dos processos de legalização e funcionamento das empresas, bem como do desenvolvimento de sistemas informatizados.
O principal instrumento desse processo é a Rede Nacional de Simplificação de Registro e Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). A primeira etapa da implantação da rede deu-se com a entrada no ar do Portal do Empreendedor Individual (MEI), que tem como meta a formalização de 1 milhão de cidadãos que recebem até R$ 36 mil por ano. "Trata-se de processo automático do registro do empreendedor e será um grande laboratório para testar a eficácia das medidas implantadas", diz Lupatini.
Os próximos passos serão a extensão da Redesim para os demais tipos e portes de empreendimentos, que dará a todos os empresários, condições de abrir, encerrar e transformar seus negócios de forma substancialmente mais simples que a atual.
"Outra iniciativa será a adoção do alvará provisório, que alcançará um grande número de empresas", diz. Esse conjunto de medidas, em associação com outras iniciativas dos governos estaduais e municipais, permitirá em um futuro próximo a plena automatização do processo de legalização e funcionamento de quase todas as empresas brasileiras, avalia Lupatini.
Com uma visão mais crítica, o economista Renato Fonseca, coordenador do programa "Corte a Burocracia" da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirma que com regras que se amontoam e sofrem alteração a toda hora, o governo se vê obrigado a concursar mais fiscais e as empresas a inchar seus departamentos contábeis e jurídicos para assimilar as legislações, em vez de investir em, por exemplo, inovação tecnológica e aumento da produção.
O arsenal de regulamentos que o governo criou para se defender das más práticas das empresas - a corrupção, via superfaturamento e outros expedientes - tem se mostrado pouco eficaz, avalia Fonseca. "Não adianta instalar um portão para fechar o sinal de tráfego, pois quem quer burlar os códigos de trânsito acaba dando a volta." Para ele, a verdadeira solução é endurecer as punições aos faltosos.
O programa da CNI visa coletar sugestões do setor privado e da sociedade em geral e selecionar aquelas que possam servir como insumos efetivos para racionalizar os controles e que seriam encaminhadas possivelmente à Casa Civil - o ponto focal do governo que "conversa" com todos os ministérios.
Fonseca alerta, contudo, que o espectro das proposições não será largo a ponto de sugerir mudanças na Constituição. A intenção não é apresentar um plano de reforma tributária inteira, ou de uma reforma trabalhista completa, por exemplo. "A ideia do projeto é tentar comer pelas beiradas, investindo contra os nichos onde se possa reduzir a burocracia." Como exemplo, cita as micro e pequenas empresas, que respondem por uma parcela pequena da arrecadação do país e por isso tornam sem sentido gastos do governo para fiscalizar uma por uma. "Os recursos deveriam ser reservados para a fiscalização do conjunto de empresas que representa o filé mignon da arrecadação." Com isso, diz, haveria mais eficiência no processo de verificação e ao mesmo tempo os negócios poderiam fluir com mais liberdade.
Mesmo onde há avanços, a situação é difícil em termos burocráticos. No quesito comércio exterior, a posição do Brasil na pesquisa do Banco Mundial melhorou um pouco no último ano. "Mas ainda estamos na centésima posição, bem abaixo dos outros países", diz Fonseca. Recentemente, conta, ele ficou surpreso quando soube que para o navio encostar na beira de um cais é preciso entregar antes cerca de 900 informações aos agentes de 14 órgãos anuentes - como Receita Federal, Marinha Mercante, autoridades portuárias e Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. "Essa burocracia é só para a embarcação permanecer no cais; depois para colocar a mercadoria do navio no porto ou do porto no navio, são mais centenas de procedimentos."
John Mein, coordenador executivo da Aliança Procomex - grupo privado que visa estabelecer uma interação entre setor privado e setor público para reduzir a burocracia na área de comércio exterior - confirma o grande volume das exigências e nota que pelos padrões em vigor a carga fica parada até que seja autorizada a andar. Mas pondera que ela poderia andar até que fosse ordenado que parasse. "Só que há um grande gargalo: os sistemas tecnológicos antiquados não permitem que ocorra essa mudança, mesmo existindo vontade política para executá-la."
Aos olhos de Mein, o conceito de burocracia ultrapassa a exigência de documentação. Também pode ser interpretada como entrave burocrático a falta de investimento em infraestrutura de sistemas informatizados, por exemplo. O Siscomex [Sistema Integrado de Comércio Exterior] ainda usa o sistema operacional DOS, da década de 90, enquanto os sistemas de outros países rodam em plataformas tecnológicas avançadas. Para complicar, no final da década de 90 os analistas seniores pediram aposentadoria. E o mais curioso é que o sistema do Siscomex, ao ser lançado na década de 90, foi considerado pioneiro no mundo.
Mein deposita esperanças no projeto Porto Sem Papel que tramita na Secretaria Especial de Portos (SEP). O objetivo é viabilizar a operação de um novo sistema informatizado para integrar todos os agentes envolvidos nas operações portuárias, eliminando o manuseio de vários formulários e papéis. "Essa, pelo menos aparentemente, é uma iniciativa positiva, desde que a autoridade portuária não continue exigindo o preenchimento de requisitos demais."
Para Fonseca, da CNI, alguns dos grandes malefícios que a geração de uma grande quantidade de prescrições produz são tornar mais difícil e custosa a formalização dos pequenos negócios, ao mesmo tempo em que se punem aqueles que estão seguindo a lei. "Por falta de melhor integração entre os órgãos anuentes, o simples pedido de um carimbo a mais chega a representar um nó na vida dos empresários e demais cidadãos."
O que leva um dos maiores especialistas na matéria, João Geraldo Piquet Carneiro, sócio da Veirano Advogados, a ponderar que continua atual o dito espirituoso do Barão de Itararé [o jornalista e humorista Apparício Torelly] de que "o Brasil é feito por nós; só falta agora desatar os nós". Piquet lembra que o inconformismo com a centralização administrativa vem de longe. Dos tempos da monarquia, com Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, praguejando contra o alvará régio, a autorização do rei para qualquer empreendimento de caráter empresarial. "Foi-se o ´régio´, mas o termo alvará continua significando que a iniciativa individual depende de uma concessão unilateral do Estado."
Piquet, que é também presidente do Instituto Hélio Beltrão, explica que a discussão do fenômeno da burocratização dos serviços públicos brasileiros remonta à segunda metade do século 19, quando se adensou o debate entre centralização versus descentralização política. Os defensores da centralização política preocupavam-se, no entanto, com as consequências que a centralização administrativa - dela derivada - poderia trazer para a administração pública. "Eles percebiam que a centralização de caráter meramente administrativo multiplicava as engrenagens do governo, os procedimentos, papéis e controles que produzem a lentidão do processo decisório."
Para Piquet, a tensão entre centralização e descentralização política e administrativa subsiste como dado fundamental para se entender o paradoxo da coexistência de pioneirismo e descontinuidade no campo administrativo. "O país começou cedo, há mais de 70 anos, a fazer reformas administrativas avançadas, o que não impediu a reincidência de ciclos de empobrecimento da administração pública, tanto em termos conceituais quanto práticos, como o que vivemos atualmente."
O Brasil, explica, foi pioneiro no início nos anos 30, nos anos 50, nos anos 60, e voltou a sê-lo na década de 80, "com a criação de um programa altamente democrático que recolocou o cidadão como destinatário final da ação administrativa". Esse foi o Programa Nacional de Desburocratização, capitaneado pelo então ministro Helio Beltrão, responsável pela abolição de milhares de documentos desnecessários, com destaque para a extinção de atestados de vida, de residência, de bons antecedentes, de pobreza e de dependência econômica.
A iniciativa, porém, teve fôlego curto. Embora o programa nunca tenha sido formalmente extinto, ele perdeu ênfase no final da década de 80. No início dos anos 90, novas medidas de maior impacto chegaram a ser adotadas, no âmbito do Programa Federal de Desregulamentação. Entre elas, a simplificação dos procedimentos de embarque e desembarque nos aeroportos, o aperfeiçoamento da emissão de passaportes e a revogação de mais de 100 mil decretos superados e desnecessários. Mas não chegou a haver maior aprofundamento depois.
Piquet identifica nas seguidas síncopes dos processos de desburocratização uma tendência. "O Estado brasileiro ainda é muito autoritário, além de centralizador. Trata o cidadão como se fosse súdito e não como o que realmente é, ou seja, o dono do país", avalia.
Na visão do especialista, quatro fatores se colocam no caminho de uma reforma efetiva. Além da forte vocação à centralização administrativa, que está na base de tudo, há o formalismo jurídico, que conduz à idealização das instituições a partir de uma visão estritamente legal. Ele acha que o país é hoje uma federação menos porque Estados e municípios efetivamente funcionam como entidades políticas autônomas e responsáveis, mas porque a Constituição estabelece que o país é uma federação. "
O terceiro fator se expressa na desconfiança que preside o relacionamento do governo com a sociedade. Parte-se do pressuposto de que o cidadão, ao buscar um serviço público, está sempre querendo obter uma vantagem e não um direito inerente. Ele entende que é por isso que as leis e regulamentos tratam o cidadão como estelionatário em potencial. "Daí também porque a prova formal - o documento, a certidão e a firma reconhecida - são mais importantes do que a realidade objetiva."
O quarto fator é o viés autoritário da administração pública. A seu ver é o autoritarismo que empresta ao administrador a condição de detentor monopolista da verdade e do conhecimento a respeito do que é melhor não só para o Estado como também para o próprio cidadão. "É ainda o autoritarismo que faz com que o cidadão seja colocado - e ele próprio se coloque - na posição de súdito e dependente dos interesses e da vontade do Estado."
Esses fatores formam o caldo de cultura que conspira para que não se instale no país uma administração pública eficiente e democrática. Para Piquet, sempre que se buscar uma nova estratégia de desburocratização será preciso levar em conta esses tópicos. "Não é um caminho simples de se trilhar, mas que terá, mais cedo ou mais tarde, que ser percorrido."
(Texto Juan Garrido)
Ideias para azeitar as engrenagens
Na tentativa de barrar infratores, o governo alimenta um processo burocrático tentacular. "Mas não barra", diz Renato Fonseca, coordenador do programa "Corte a Burocracia" da Confederação Nacional da Indústria (CNI) - porque aquele que quer infringir sempre vai achar uma maneira de iludir o novo sistema. E aí se cria um novo dispositivo. "É essa incessante criação de regras para que alguns poucos não burlem os sistemas, o que acaba atravancando todo o processo produtivo do país."
Por conta dessa percepção, a CNI está angariando sugestões da sociedade civil e em especial dos empresários para reduzir a burocracia. A partir delas vai elaborar propostas de aperfeiçoamento da legislação e negociar a implementação com o governo. Fonseca explica que o programa, apesar do nome, nem de longe defende o fim da burocracia. Ele entende que todos os órgãos anuentes precisam atuar no controle sanitário, na segurança contra explosivos, no combate à evasão de receitas e assim por diante. "Mas os controles e fiscalização de cargas precisam passar a ser mais racionais do que são hoje", diz. Ele cita como exemplo os portos brasileiros, cujo controle é feito por mais de uma dezena de anuentes.
Outra disfunção apontada pelo coordenador da CNI é que não raro o funcionário que está na ponta da fiscalização cria instruções para ele próprio, ou seja, não segue uma regra única e uniforme. "Aí, além da burocracia, você convive com a incerteza, porque por uma entrada marítima é possível fazer uma coisa e por outro porto é tudo completamente diferente."
Com tantas regras, procedimentos, documentos, repartições e exigências emperrando a máquina pública e penalizando as empresas e cidadãos, geram-se situações inusitadas. Como o fato de muitas empresas serem obrigadas a manter um estoque até oito vezes maior de componentes importados em relação aos outros componentes comprados no mercado interno. "O produto doméstico o empresário sabe que o fornecedor vai entregar, mas o importado ele nunca sabe quando vai chegar", diz Fonseca. "E aí ele tem custos maiores, precisa de mais capital de giro e perde competitividade."
Exigências e procedimentos desnecessários têm fôlego de gato
Além de ter criado o conceito de organização burocrática - e ter chamado as consequências do processo de "disfunções" -, o sociólogo Max Weber foi um dos maiores estudiosos da burocracia. Para ele, os atributos da burocracia moderna incluíam a impessoalidade, a concentração dos meios da administração, o nivelamento entre as diferenças sociais e econômicas e um sistema de autoridade difícil de ser destruído. O que ele talvez não tivesse previsto é que estas disfunções passariam a constituir as novas regras operacionais para as organizações públicas, como no caso do Brasil.
Um dos maiores expoentes da desburocratização no país, o ministro Hélio Beltrão (falecido em 1997), costumava citar que a burocracia tem fôlego de gato. "É preciso estar sempre atento para que exigências desnecessárias e já eliminadas não voltem a ser feitas, por conta da visão equivocada e distorcida de alguns administradores", dizia. Ele conhecia o inimigo que enfrentava. A necessidade do reconhecimento de firmas, por exemplo, voltou a vigorar depois de ser extinta.
Segundo outro conceituado estudioso da questão no Brasil, o advogado João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão, não se pode esquecer que no Brasil as primeiras manifestações a respeito do fenômeno da burocratização dos serviços públicos remontam ao Segundo Reinado, quando se adensou o debate entre centralização versus descentralização política. Naquela época a preocupação maior era com a consolidação de um Estado forte, o que dependia obviamente da manutenção da integridade territorial de um país imenso e rarefeito. "Historiadores contemporâneos têm apontado para o fato de que a noção de ´Império´ adquiriu para os brasileiros uma conotação peculiar. Para nós, a ideia de império não tinha a ver com conquistas externas; ao contrário, tratava-se de buscar um país internamente forte - uma espécie de antecipação daquilo que os militares viriam a definir, nos anos 70, como um projeto de Brasil Grande Potência."
Do fim da monarquia à Revolução de 30, o processo político foi no sentido da forte descentralização política, com o poder político sendo transferido para as províncias sob a forma de consolidação das oligarquias locais e do coronelismo. O Estado Novo, de 1937 a 1945, inaugurou um novo ciclo de centralização política pelo governo federal e de correspondente enfraquecimento do poder estadual e municipal. Entretanto, os revolucionários de 30, inspirados no positivismo de Augusto Conte, atribuíam à modernização do Estado, ainda que pela via autoritária, uma singular importância no seu projeto político. Para os positivistas, na ausência de elites preparadas e diante de uma economia capitalista tíbia, caberia ao próprio Estado modernizar-se. "Modernizar, no caso, implicava, entre outras providências, dar maior agilidade e eficiência ao setor público", diz Piquet.
Em termos de desburocratização, Piquet enfatiza a importância da Reforma Administrativa de 1967. Houve o embate da corrente tradicional, que enxergava o processo de reforma como um problema de adequação das estruturas governamentais, com a vertente defendida por Helio Beltrão, que percebia a reforma como um verdadeiro processo, no qual o elemento humano tinha importância fundamental. Dizia Beltrão que as organizações, assim como os planos de governo, valem exatamente o que valem as pessoas que as administram e os executam. "Muita água passou embaixo da ponte de lá para cá, mas - como processo que é - a luta pela desburocratização continua", diz Piquet. (Juan Garrido)
Interpretações pessoais complicam a legislação
Em São José dos Pinhais, no interior do Paraná, um industrial do setor químico recebeu pouco tempo atrás a visita de um representante do Corpo de Bombeiros da cidade. Numa vistoria rápida ao galpão da empresa, sem prévio agendamento, o bombeiro elencou uma série de mudanças no posicionamento de máquinas, equipamentos e matérias primas que, segundo ele, deveriam ser feitas com urgência, sob risco de multa e suspensão temporária das atividades da empresa. Preocupado e sem condições de atender aos pedidos no prazo exigido, o empresário resolveu pedir que a ordem fosse feita por escrito, até para ganhar tempo. Resultado: o visitante desconversou, retirou-se e a fábrica continuou a funcionar normalmente.
A história é contada pelo professor de Direito Civil Paulo do Amaral, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, para ilustrar o que considera um dos maiores problemas da extensa máquina burocrática e de fiscalização à atividade industrial ramificada pelo Brasil: a forte interferência pessoal na interpretação de uma das mais complexas legislações regulatórias do planeta. O que dá margem, em outras palavras, a movimentos de pressão e ocorrência de corrupção.
Todos os dias, dezenas de milhares de fiscais das mais diferentes esferas do poder público saem às ruas tendo nas mãos o que os especialistas em Direito chamam de alto poder discricionário. Na prática, isso significa um contingente de autoridades municipais, estaduais e federais que podem entrar em estabelecimentos regulares, apontar o que entendem como ilegal e, ali mesmo, lavrar multas, determinar apreensões e até suspender a atividade produtiva. "A burocracia é útil para promover o crescimento organizado da sociedade, mas muitas vezes, em razão de sua extrema amplitude e complexidade, abre espaço para os que querem oferecer dificuldades para vender facilidades", reconhece o procurador Amaral. "O sistema burocrático brasileiro passa por um processo de modernização nos últimos dez anos, em razão do crescente trânsito de documentos pela internet, mas ainda oferece muito poder discricionário para a ação humana."
Os próprios integrantes do Ministério Público se viram fortalecidos, nos últimos anos, em seu papel de fiscalizar a atividade industrial. Lotados em órgãos oficiais de defesa do consumidor, eles exercem poderes constitucionais para avaliar e orientar o dia a dia de centenas de milhares de empresas. "A visão de que a geração de riqueza tem de ser socialmente útil, com respeito à preservação do meio ambiente e social, não avançou apenas no Brasil, mas sim no mundo inteiro", lembra Amaral, referindo-se à especial atenção dos integrantes do MP sobre os reflexos ambientais das ações empreendedoras. "Uma fábrica pode criar muitos empregos, mas isso não dá direitos a ela de causar danos ao solo, à água, ao ar e aos seus trabalhadores". Nesse sentido, a romaria de autorizações cruzadas entre ministérios verificada para a abertura do processo de concorrência da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, é um exemplo pronto e acabado. Até receber as últimas assinaturas e carimbadas, em fevereiro, autorizando enfim a concorrência pública estimada em R$ 20 bilhões mediante uma série de adequações, o processo circulou por um ano e dois meses nos gabinetes de Brasília. "Estamos nos finalmente", dizia o ministro Carlos Minc, às vésperas da decisão que ninguém ao certo apostou qual seria. Por mais de uma vez, o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva reclamou da lentidão na análise. O procurador Amaral reconhece que o modelo burocrático brasileiro é, de fato, falho no quesito agilidade. Ele lembra que decisões errôneas podem ser tomadas rapidamente e demandar anos de tramitação na Justiça para serem revertidas. "Sem dúvida nossa burocracia precisa de aperfeiçoamento e modernização", diz.
Para estudiosos do tema, nos momentos decisivos para atingir o equilíbrio entre exigências legais e promoção do crescimento, o Brasil caminha para trás. Foi assim, de acordo com o economista e ex-ministro da Fazenda e da Administração Luis Carlos Bresser-Pereira, no processo de redação da atual Constituição. Em seu ensaio "Burocracia Pública na Construção do Brasil", Bresser discorre sobre o que chama de retrocesso burocrático de 1988. "Contraditoriamente, enquanto o país se descentralizava, voltava a centralização no plano administrativo." Na prática, isso significou mais privilégios para os integrantes da máquina pública, com maior rigidez hierárquica e estabelecimento de vantagens corporativas.
É por força de movimentos desse tipo, que o Brasil é tido, muitas vezes, como o país mais burocratizado do mundo. Foi o que apontou, em 2007, o Relatório Internacional de Empresas, da consultoria Grant Thornton International. Ouvindo diretamente os agentes produtivos, o levantamento conclui que à frente de países como Rússia e Polônia, que ficaram na segunda e a terceira posição, respectivamente, é o Brasil o campeão mundial da burocracia. Aqui, as reclamações dos industriais frente à complexidade da legislação e os excessos da fiscalização superam as críticas quanto aos custos financeiros da manutenção de uma empresa e a carência de mão de obra para desenvolvê-lo. (Marco Damiani)
Mobilização tem como objetivo simplificar ritos processuais, formalidades e reduzir o número de exigências, porém, sem a intenção de acabar com controles existentes na economia
Movimento empresarial busca normas mais eficientes no país
A indústria está empenhada em estruturar um amplo projeto de combate aos excessos da burocracia em todos os níveis. Alguns dos porta-vozes desse movimento, como os presidentes das federações de Goiás e Minas Gerais, Paulo Afonso Ferreira e Robson de Andrade Braga, afirmam que o esforço para corrigir distorções nessa área exigirá uma guerra sem tréguas, mas também concordam que há espaços para avanços, como demonstram alguns exemplos colhidos ao longo do 1º Seminário Regional: Projeto Corte à Burocracia, promovido em conjunto pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e as federações de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e de Brasília, realizado no início de março, em Goiânia.
A intenção, segundo Ferreira e Braga, não é derrubar normas e desregulamentar a economia, até porque a ausência de mecanismos de controle teria exercido papel central na crise que derrubou o sistema financeiro global no fim de 2008. A proposta em construção pelo setor, ao contrário, prevê tornar a regulação mais eficiente, simplificando ritos processuais e formalidades, eliminando exigências descabidas, com redução do tempo, de custos e fixação de metas de gestão e de qualidade, por meio do uso intensivo da informática.
O primeiro encontro reuniu, em Goiânia, além de empresários e especialistas, o diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Luiz Antônio Pagot, o vice-governador de Minas Gerais, Antônio Anastasia, e o coordenador executivo do Instituto Aliança Procomex, John Mein, ex-presidente da Câmara Americana de Comércio (Amcham Brasil). Encerrada a fase de debates regionais, está prevista para Brasília, a realização de um encontro sobre o tema. As propostas levantadas em todo o país serão consolidadas pelo CNI num amplo projeto de desburocratização.
Esse programa de corte à burocracia, disse Braga, presidente da Fiemg, deverá ser "encampado pelos governos estaduais, municipais e federal, em parceria com o setor privado", o que permitirá maior eficiência na economia e oferta de bens e serviços "com mais qualidade e mais competitivos", afirmou.
O vice-governador de Minas Gerais, Anastasia defendeu políticas de valorização dos servidores e de profissionalização da gestão pública, de forma a tornar mais eficientes as ações do Estado, antes mesmo de se pensar em políticas públicas. Desde 2003, lembrou, com apoio da consultoria do Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), o governo mineiro implantou seu programa de desenvolvimento integrado, que tem como uma de suas vertentes o combate ao que Anastasia chama de "burocracia negativa" - aquela que impede a prestação de serviços eficientes ao cidadão.
Entre os projetos incluídos no programa, o Minas Fácil foi criado para simplificar os procedimentos de empreendedores no momento de abrir seu negócio, "reduzindo barreiras burocráticas à formalização de empresas", afirmou Anastasia. A Junta Comercial do Estado de Minas Gerais (Jucemg) padronizou 72 entendimentos legais relacionados ao registro mercantil, digitalizou toda a documentação e colocou tudo isso no site da instituição, além e criar uma central de informações.
Os usuários do sistema podem acompanhar processos e serviços, passo a passo, pela internet. Mais recentemente, a junta passou a oferecer, também por meio virtual, a possibilidade de consulta a projetos padronizados de viabilidade e modelos de um pré-contrato social aos interessados em abrir o primeiro negócio. "No início desse processo, a abertura de uma empresa exigia mais de 40 dias. Em 2009, essa média foi reduzida para nove dias. Trata-se de um avanço, mas ainda é pouco. Em Cingapura, é possível abrir uma empresa em apenas três horas", comentou.
Na verdade, o número já havia baixado um pouco mais, para cerca de oito dias, na média do segundo semestre de 2009, quando foram constituídas 5.954 empresas no Estado. Por conta da crise, que esfriou o ritmo dos negócios, o número de empresas abertas na segunda metade de 2009 havia caído 20% frente às 7.448 registradas em igual período de 2008. Mas o tempo gasto pelos empresários baixou quase 11%.
O governo de Goiás também sustenta desde 1999 um programa exatamente no mesmo estilo, chamado Vapt Vupt - Sistema Integrado de Atendimento ao Cidadão, atualmente com 20 unidades em todo o Estado. Em fevereiro, o sistema completou seu décimo aniversário com perto de 55 milhões de atendimentos. Na média, segundo o governo, são realizados cerca de 30 mil atendimentos por dia, a um custo médio de R$ 1,24 por pessoa - 22% mais baixo do que no início do programa. Os números oficiais mostram que o tempo de espera do usuário nas unidades varia entre 1,57 e 14,5 minutos, com média de 7,31 minutos, com um índice de desistência inferior a 5,9%.
Ambiente: Em São Paulo, agência ambiental prevê redução de 30% no tempo para a aprovação de processos mais complexos a partir da adoção de novos procedimentos de análise
Governo estuda mudanças para os sistemas de licenciamento
Sergio Adeodato, para o Valor, de São Paulo
17/03/2010
Para destravar investimentos industriais e atender à crescente demanda na economia aquecida, o governo de São Paulo aprovará nas próximas semanas uma reforma no sistema de licenciamento ambiental. "Estimamos reduzir em 30% o tempo dos processos mais complexos", revela Fernando Rei, presidente da Cetesb, a agência ambiental paulista. Ele lembra que o primeiro passo para simplificar a licença aconteceu em meados do ano passado, com a criação do Licenciamento Ambiental Unificado, para centralizar a análise dos projetos que antes precisavam passar pelo crivo de quatro órgãos estaduais. "Com os novos procedimentos, poderemos dedicar mais atenção aos projetos maiores de grande impacto, melhorando a qualidade e eficiência do licenciamento", anuncia Rei.
Nas obras menores e de impacto praticamente nulo, a licença, que antes demorava até 30 dias, será instantânea, com preenchimento de formulário eletrônico on-line. Cerca de 25% da demanda por licenciamento enquadra-se nessa categoria. No caso de projetos pequenos e médios, mas com condicionantes ambientais, a demora depende do grau de riscos, podendo chegar a três meses. Na terceira categoria, relativa a empreendimentos de grande envergadura que exigem licença prévia, de instalação e de operação, o prazo, que chegava um ano e meio, encurtou para aproximadamente 12 meses. "Ganharemos tempo para melhorar o planejamento e buscar soluções para passivos já gerados", afirma Rei.
A Cetesb expediu 24,2 mil licenças ambientais em 2009, com receita de R$ 98 milhões, incluindo as autuações. O número é inferior ao de 2008 e 2007, quando superou 34 mil ao ano. "A queda é reflexo da crise internacional, mas a expectativa é de um novo crescimento a partir de agora com a retomada da produção", analisa Rei.
Uma das providências foi ampliar o processo de municipalização do licenciamento ambiental para empreendimentos de impacto exclusivamente local, conforme prevê a Constituição, desafogando a estrutura da agência para temas mais complicados. Em todo o Estado, existem 200 mil projetos até hoje licenciados. Em 2007, apenas Santo André, na Região Metropolitana, expedia a licença. O trabalho é hoje realizado por 50 municípios, mediante convênio para qualificação dos técnicos. "A questão ambiental entra na agenda política dos prefeitos", afirma Rei.
Por outro lado, acrescenta ele, o licenciamento mais rápido e simples contribui para que as indústrias invistam para ir além da conformidade legal e repensem suas práticas como diferencial de mercado. "A reforma era uma antiga reivindicação do setor", afirma Nélson dos Reis, diretor de meio ambiente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Mas há obstáculos: "Apesar das novas medidas, contraditoriamente, surgem resoluções da Secretaria de Meio Ambiente que exigem anuências de diferentes órgãos durante o licenciamento e a realização de estudos sofisticados, o que significa mais demora e custos, além da possibilidade de interferência do Ministério Público."
No nível federal, o governo estuda reduzir papéis e simplificar procedimentos. "Planejamos um protocolo único para pedidos de licenciamento, sem a necessidade de dar entrada com documentação em diferentes autarquias", revela Roberto Messias Franco, presidente do Ibama. Ele diz que a Resolução 0186 do Conselho Nacional do Meio Ambiente sobre licenciamento tem mais de 20 anos e precisa ser modernizada. "Mas não abrimos mão da qualidade", adverte Franco. "Os grandes projetos estruturantes, sob responsabilidade do Ibama, envolvem mais de um Estado e têm amplo impacto".
Com base nas resoluções do Conama, um megaempreendimento teoricamente pode demorar um ano para ser aprovado, após o termo de referência - uma espécie de aval para entrar em análise. Na prática, a demora é maior. É obrigatório cumprir um processo de audiências públicas para garantir a participação popular na avaliação do EIA-RIMA. Após essa etapa, a licença prévia tem prazo de 180 dias para ser concedida, além de mais 75 dias para a licença de instalação e 45 dias para a de operação. "Tudo depende da qualidade do produto apresentado pelo empreendedor", explica Franco. "Na maioria das vezes o problema da morosidade não está na burocracia, mas nos erros e lacunas técnicas dos projetos."
Dificuldades são maiores para pequenas e médias indústrias
Marco Damiani, para o Valor, de São Paulo
Ávida por certidões, atestados, autorizações e toda sorte de licenças e alvarás, a máquina pública brasileira ainda cultiva abertamente a tradição de dificultar os movimentos da livre iniciativa. Na grande maioria das vezes, um ou mais cartórios com suas exigências de firmas reconhecidas e recolhimento de taxas se colocam entre a intenção e o gesto do empreendedor. Ao mesmo tempo, fiscais com grande poder discricionário sobre a legislação agem com uma desenvoltura que abre espaço para a corrupção. Um histórico de costumes inaugurado nos tempos do Brasil Colônia, acentuado pelo desembarque da corte imperial, pouco mais de 200 anos atrás, e cujos efeitos são sentidos ainda hoje - tanto em operações que deveriam ser simples, como a abertura de uma empresa, até feitos considerados mais complexos, do tipo obter guias de exportação.
"Fiel à herança portuguesa, o nosso sistema burocrático permanece baseado na desconfiança, o que faz com que operações empresariais corriqueiras gerem uma documentação muitas vezes desproporcional ao ato em si", explica o advogado Paulo Succar, especialista em Direito Empresarial e sócio da banca Araújo e Policastro. "É comum um industrial buscar autorizações e alvarás para sua atividade e simplesmente não saber como seguir adiante, tal o movimento de idas e vindas que os papéis têm de cumprir."
Para uma empresa, é uma missão bastante complicada conseguir um Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros (Radar), como é chamada a autorização federal para atividades exportadoras, em menos de seis meses. No caso de pequenas e médias indústrias, a tarefa pode ser ainda mais árdua. Não é à toa que o Serviço de Apoio ao Empreendedor e Pequeno Empresário (Sebrae) recebe cerca de 100 mil consultas por mês apenas em São Paulo. "Não discutimos a qualidade das exigências burocráticas, apenas orientamos os empreendedores a como agir diante da legislação regulatória", diz o consultor jurídico do órgão, Paulo Melchor.
Nos Estados Unidos e no Canadá, criar uma empresa e conseguir autorização de funcionamento é uma operação que pode levar entre dois e quatro dias, a depender da região. Em Estados como Flórida, Califórnia e Delaware, consumar uma sociedade com fins empresariais não demanda sequer o registro do documento em cartório, bastando para as autoridades o instrumento particular firmado entre as partes. Aqui, a história é outra. Obter um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) pode custar uma espera, em média, de 15 dias, chegando a um mês em muitos casos.
Até 2006, quando algumas exigências burocráticas foram deixadas de lado, o processo podia durar mais de quatro meses. Para a indústria, porém, os prazos atuais se alongam de acordo com o ramo de atividade. Em setores regulados como os de medicamentos e mineração, em que são necessárias investigações e aprovações de órgãos federais como a Anvisa Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Instituto Biodinâmico (IBD), para casos em que a matéria-prima advém de produtos orgânicos e o Ministério do Meio Ambiente, entre outros, a espera pode atingir a marca de três anos.
"Nos últimos cinco anos, muita coisa mudou na legislação de saúde pública, tornando-a mais complexa e sofisticada", diz o farmacêutico Marcos Caram, de Botucatu, no interior de São Paulo. Sócio da empresa de médio porte Magia dos Aromas, de manipulação de produtos orgânicos, ele precisou se tornar um leitor contumaz do Diário Oficial da União para se manter em dia com as novidades burocráticas. "Não bastasse a quantidade de regras, é preciso estar à par de todas as atualizações para não correr o risco de burlar a lei sem querer", afirma.
Joseph Couri, presidente do Sindicato de Micro e Pequenas Indústrias do Estado de São Paulo (Simpi), reconhece um movimento pendular na máquina burocrática brasileira, ora se modernizando pelo uso cada vez mais frequente da internet na circulação de documentos, ora mantendo exigências como o reconhecimento de firma em cartório. "Em lugar de estimular uma pessoa à atividade empresarial, essas verdadeiras ameaças legais sinalizam para uma acomodação que não combina com as necessidades de crescimento econômico e social do Brasil."
A rotina para driblar as armadilhas e sobreviver à dura concorrência
Marco Damiani, para o Valor, de São Paulo
17/03/2010
Na prática, o engenheiro agrônomo e empresário paulista Luiz Antônio Galhardi é um vencedor. Fundador da Orgânica, indústria de cosméticos, produtos de higiene pessoal e acessórios para banho feitos com matéria-prima de origem certificada, ele já soma 20 anos de atuação no mercado. Quando as portas da companhia foram abertas, contava com apenas dois funcionários. Hoje, instalada em Santana do Parnaíba, na Grande São Paulo, faturou R$ 6 milhões em 2009. Além de sobreviver em meio à dura concorrência do setor, Galhardi também se considera um vitorioso diante do que chama de "armadilhas burocráticas". Elas se apresentam em seu caminho praticamente todos os dias.
"O conjunto da legislação que regula o meu setor de atividade é sempre complexo, muitas vezes confuso e absolutamente rigoroso", diz o empresário. "Nos últimos tempos, o nível de exigências aumentou a tal ponto que precisei terceirizar o serviço que cuida das aprovações dos nossos produtos na administração pública e dos contratos comerciais que realizamos. É preciso estar muito bem preparado para entender e vencer a burocracia", ressalta.
Atuando num setor vigiado de perto por órgãos federais, estaduais e municipais de saúde, meio ambiente, agricultura, vigilância sanitária, defesa do consumidor e outros, o empresário, por mais que se esforce, algumas vezes mal sabe se está atendendo à risca todas as demandas. Afinal, da matéria-prima à embalagem, tudo em seu negócio tem de passar pelo crivo das esferas de governo. "Parece que, até prova em contrário, o empresário é culpado por querer crescer e desenvolver o seu negócio", reflete Galhardi. "Além de incomodar e absorver energias que poderiam ser dedicadas ao trabalho em si, toda a burocracia que cerca as empresas gera custos altíssimos para ser atendida."
Com previsão de crescer 20% em 2010 sobre seus resultados alcançados no ano passado, o empresário acredita que poderia avançar com mais rapidez se a malha burocrática fosse menor ou mais flexível. "Não tenho dúvida de que minha empresa poderia ser duas ou três vezes maior do que é hoje, se a burocracia fosse mais amistosa com o empreendedor", acredita. "O ritmo de crescimento sempre é desacelerado cada vez que surge uma dúvida nos órgãos da administração pública sobre algum certificado ou autorização."
Nesse momento, a Orgânica começa a se deparar com a dificuldade extra de compreender as nuances entre as legislações dos 27 Estados e mais de 5 mil municípios brasileiros. Isso porque firmou parceria com a Natura, uma das líderes nacionais do setor, para que seus produtos sejam comercializados em escala nacional. Além dessa, a marca ganhou outras duas importantes oportunidades para aumentar suas vendas, graças aos acordos fechados por Galhardi para exposição e vendas nas redes Walmart, de supermercados, e Drogasil, de farmácias. "Já estou preparado", afirma. "A cada passo adiante é preciso voltar um pouco atrás para atender a uma nova bateria de regras e imposições. Faz parte." A Orgânica ainda não exporta, e, na verdade, mal tem planos para conquistar o exterior. "As dificuldades para empresas de pequeno e médio portes exportarem são maiores do que para as grandes companhias", calcula. "Prefiro consolidar meu negócio no Brasil do que arriscar meu posicionamento enfrentando uma burocracia ainda mais complicada para conseguir chegar ao exterior."
Excesso de regulamentação gera informalidade na economia e no trabalho
O Estado burocrático, e no Brasil ele não foge à regra, com sua fome arrecadadora, é responsabilizado por criar uma distorção na vida econômica, a atividade informal, capaz de gerar riqueza e, ao mesmo tempo, não fazer parte do mundo dos negócios como gostariam as autoridades fazendárias de todos os níveis - federal, estadual e municipal. Basta olhar para as calçadas e praças das áreas metropolitanas para ter uma ideia do que acontece no Brasil em matéria de trabalho e atividade empresarial informal. Ambos representam 12% do Produto Interno Bruto (PIB), conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2005, o percentual era de 8,4%.
Acrescenta-se ainda o ambiente ideal para a prática da pirataria. Economistas citam um número assustador: a existência de aproximadamente 10 milhões de empresas informais em atividade no Brasil. Além do excesso de burocracia para abrir ou fechar um empresa no país (o fechamento é um "calvário maior"), um trabalhador com carteira assinada custa para o empregador mais 75% do que é pago ao empregado, que também tem descontos consideráveis no seu salário, algo em torno de 30%, dependendo da faixa salarial.
"A informalidade na atividade econômica nunca acabará. Isto é característica das economias em desenvolvimento, que não conseguem responder à demanda pela criação de empregos e empresas formais", diz Francisco Barone, professor de empreendedorismo da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio, apesar dos seus títulos de pós-graduado, mestre e doutor em cursos na área econômica.
Barone reforça sua afirmação: "O Estado é competente para arrecadar e incompetente para gastar. Assim, a percepção do brasileiro é de que essa massa de dinheiro não volta como devia em investimentos na educação, saúde e segurança, por exemplo. Por isso, o cidadão escolhe a informalidade para sobreviver."
O IBGE diz que a mão de obra informal chega a 58,8% do total dos empregos no país. Deles, 36,2% são autônomos e 22,6% funcionários sem carteira assinada. Entre os informais, 40% tinham 40 anos de idade ou mais. O setor terciário é o maior reduto dos informais, principalmente na área de serviços, porque é mais fácil trabalhar sem a exigência de capital intensivo. Ele acha que não se deve combater a informalidade. É melhor conviver com ela. A saída seria a criação de mecanismos para melhor interagir com a informalidade, até porque ela tem uma ligação íntima com a atividade formal, que é onde ela se abastece para poder atuar. (Gilberto Pauletti)
Fonte: Valor Econômico